"Até que se tornem conscientes, jamais se rebelarão. Até se rebelarem, jamais se tornarão conscientes." - 1984, George Orwell
Resumo: O processo de zumbificação aqui descrito depende de duas partes, a adequação aos valores do trabalho com foco no lucro e a submissão à lógica de consumo. Estas duas partes se unem para estabelecer o problema real, em minha opinião, da sociedade contemporânea, a falta de tempo, conhecimento e vontade para o pensamento crítico. Outro produto deste problema é o estranhamento gerado entre os sujeitos, de tal forma que as relações interpessoais entre indivíduos geograficamente próximos se tornam cada vez mais, na melhor das hipóteses, superficiais.
O que nos define como ser humano? Um par de polegares opositores? Um encéfalo altamente desenvolvido? Talvez, mas gosto de pensar que o nos separa de outras criaturas que dividem nosso mundo conosco é a nossa capacidade de pensar sobre o pensar, a capacidade de agir além do nosso benefício imediato e de, até mesmo, agir em benefício de um outro que nem ao menos conhecemos. Como exemplo, o apoio que a comunidade que perambula pela internet ofereceu e oferece para locais como a Síria, ou como foi o caso do Egito. Ou ainda a revolução ocorrida na Islândia, derrubando seu governo e prendendo os capitalistas selvagens responsáveis pela quebra total de sua economia. Esses pequenos eventos demonstram, para mim, o que é ser humano. Demonstram a consciência, o esforço e a coragem de criar um mundo melhor não apenas para nós mesmos, mas também para todos aqueles que convivem conosco em nosso pequeno pontinho azul que flutua na escuridão infindável do universo.
Sabemos que a orientação religiosa ou não religiosa não influência de forma significativa a construção de valores morais e comportamentos éticos. Podemos, portanto, pressupor que a crença pessoal em relação ao que há após a morte é irrelevante na definição de valores básicos para a construção e manutenção de uma sociedade pacífica. Tendo isso em mente, devemos então questionar quais são estes valores fundamentais que erguem a sociedade contemporânea. O modelo capitalista nos impõem uma grande quantidade de valores inescapáveis para que se possa sobreviver de forma confortável no mundo. Valores como o trabalho, o esforço, a dedicação, o profissionalismo, a manutenção do tempo, o estudo, a submissão, o não questionamento, a aceitação da opinião majoritária, o respeito aos que se encontram acima de nós na hierarquia e o consumismo, para citar alguns exemplos.
Para que servem esses valores? A quem servem estes valores? De uma maneira tosca, a produção e propagação destes valores tem a função clara de manter o sistema capitalista em funcionamento. Praticamente todos os valores exaltados pela educação capitalista liberal giram em torno do trabalho em si e atitudes desejáveis para que haja produção satisfatória. Até a valorização da educação contínua ao longo da vida é fundamentalmente distorcida ao ser direcionada simplesmente para o aumento da eficácia no mercado de trabalho. Acima de tudo, estes valores servem para criar uma prisão imaginária em torno do sujeito, transformando seus vizinhos, parentes e amigos em policiais carcerários que trabalham de bom grado sem o menor custo.
O sujeito contemporâneo é atado pelos grilhões de dois grandes imperativos do capitalismo liberal, são eles o trabalho e o consumismo. Todas as outras coisas que zumbificam os sujeitos giram em torno destes dois grandes pesos. Façamos uma diferenciação: O trabalho, como forma de manutenção de uma comunidade, pautado ou em objetivos práticos (como alimentação, manutenção da higiene, construção, saúde, desenvolvimento de tecnologias e etc) ou em objetivos "puros" (como física, matemática, química, biologia, sociologia, antropologia e o que for com o objetivo de desenvolvimento teórico) é indispensável para qualquer sociedade que vise tanto o bem de seus cidadãos quanto a progressão de sua capacidade de sustentar, de forma ecologicamente correta, sua população.
O trabalho que aqui é tratado como um peso que impede o ser humano de atingir sua plenitude é o trabalho pautado na mais-valia, um trabalho sem objetivos observáveis que gerem benefícios para a comunidade. Possui seus alicerces ou na manutenção de um sistema cujo cidadão comum nem ao menos compreende, ou em serviços burocráticos que servem mais para manter as pessoas ocupadas e fornecer trabalhos do que qualquer outra coisa. Esta forma de trabalho ignora o ser humano enquanto sujeito para além do que lhe convém para o aumento do lucro, é uma forma de trabalho, muitas vezes, intelectualmente degradante, rotineira e, verdadeiramente, zumbificante. A ironia deste sistema cíclico foi comentada magistralmente nas imortais palavras de Tyler Durden em Clube da Luta: Nós trabalhamos em empregos que odiamos, para comprar porcarias que não precisamos.
Entramos então no segundo grilhão que impede o sujeito de avançar como ser humano, a lógica consumista. O consumismo é, sem a menor sombra de dúvida, o câncer da sociedade contemporânea. A lógica de consumo impede que todos tenham o mínimo, ela mantém alguns na miséria para fazer valer o status de obter bens caros, coisas que, se todos tivessem, não possuiriam o menor valor. Como exemplo, o que é o diamante? Carbono condensado, uma pedra de aparência vítrea e estética agradável, apenas isso. O que o torna tão invejável não é sua beleza, não é só sua raridade (raridade mantida intencionalmente, segundo algumas teorias de conspiração), o que torna o diamante belo é o fato de que pouquíssimas pessoas podem possuí-lo. É uma lógica cruel, onde se tira satisfação, a "felicidade de consumir", diretamente da desigualdade e não da utilidade real ou simples beleza do objeto.
E o que isso tem haver com se tornar um zumbi? É um salto de lógico bastante pequeno, na verdade, e se desenvolve, principalmente, a partir da relação cíclica entre trabalho e consumo. A lógica de trabalho nos mantém submissos, presos a nossos chefes ou responsabilidades exacerbadas Nossa família e nossos amigos nos criticam quando nos sentimos mal com nosso trabalho, quando não queremos entrar nesse ciclo vicioso, agem como agentes carcerários. Acredito que a melhor expressão para descrever a situação do sujeito comum com o trabalho seja a de refém, incluindo-se nessa relação uma boa dose de síndrome de Estocolmo.
Comentamos anteriormente sobre o tempo que o trabalho ocupa, mas vou mais além, o trabalho ocupa um tempo percebido que não pode ser medido em horas. Ao criar uma rotina longa e entediante, ao retirar do dia a dia do sujeito qualquer forma de inovação, de pensamento e atitude criativa, o trabalho, por via do hábito, torna nossa vida mais curta em nossa percepção. Existem estudos em cima deste tipo de relação, mas não precisamos ir além daquela sensação de sexta a feira a noite de que nada de interessante ocorreu durante a semana, aquela sensação no final do ano que o ano não durou nada. Nos espantamos ao ver que anos passaram desde que saímos do ensino médio, da faculdade e lembramos de como o tempo parecia passar mais devagar naquela época e foi, progressivamente, acelerando conforme fomos envelhecendo. Essa é a verdadeira percepção de uma vida jogada em segunda plano em prol da manutenção de um lucro que nem ao menos encontrará o caminho para o seu bolso.
O consumismo serve para a segunda etapa do desenvolvimento desta rotina zumbificante, afinal de contas, o mundo capitalista precisa encontrar um meio de desenvolver uma rotina que ocupe todo o seu dia todos os dias, que não disponibilize tempo para pensar, seja por cansaço, seja por pressões sociais de ordem consumista. Sentar e conversar sobre política, sobre filosofia, sobre a situação do mundo e sobre os problemas ambientais é, para grande parte das pessoas, um plano chato. Se vamos conversar sobre algo deveríamos conversar sobre carros, mulheres, homens, o que fulan@ ou siclan@ fez semana passada, ontem, hoje, não? Deveríamos conversar sobre o que esta na moda, sobre computadores novos, sobre futebol, basquete, vólei, olimpíadas copa mundial, sobre a vida dos famosos e sobre a novela, não? A filosofia consumista não se limita ao gasto de dinheiro, o gasto de dinheiro é mais um resultado que um objetivo, na minha opinião.
Ser politizado se tornou uma espécie de tabu, degradou-se em coisa de gente chata. Alias, pensar sobre qualquer coisa com mais significado que a festa do final de semana passado ou nas intrigas dos relacionamentos amorosos da sua vida é visto com um certo ar de estranheza, como algo interessante de se escutar vez ou outra talvez, mas não algo para se levar para a vida. Não entrarei no argumento de que a pessoa padrão emburrece com o passar do tempo, argumento que todas as gerações desenvolvem com relação as próximas gerações, mas definitivamente as gerações contemporâneas tem menos tempo para pensar do que seus antepassados. O tempo dedicado ao ócio, aos momentos de desenvolvimento de projetos pessoais e de pensar sobre a própria vida, tem diminuindo consideravelmente de geração para geração. Esta diminuição do tempo disponível para pensar criticamente é muito conveniente para a manutenção do sistema de escravidão voluntária que nós chamamos de capitalismo.
Nas palavras de um grande amigo meu, o sistema é bruto. Essa brutalidade nos destrói enquanto humanos nos alimentando da ilusão de que este processo de decadência é, na verdade, uma forma de se individualizar, de se tornar único. Não se deixe decair, não se deixe brutalizar, ao menos não sem entender o processo que te degenera.
Fraternalmente,
mascarasesabonetes